Procusto, personagem da mitologia grega, era um malfeitor que obrigava suas vítimas a deitarem em uma cama de ferro, adaptando-se a seu tamanho: se maiores, as pernas seriam cortadas; se menores, seriam esticadas até se amoldarem ao leito. As normas jurídicas não podem ser interpretadas como o leito da mitologia, cortando-as ou esticando-as para se amoldarem ao interesse de determinada pessoa ou grupo. O debate travado pelas empresas de fretamento por aplicativo ou colaborativo tem esse viés.
O transporte coletivo é um serviço público, devendo ser prestado diretamente pelos entes públicos ou por particulares, mediante outorga de concessão ou permissão. O fretamento é a atividade de transporte que não admite cobrança individual de passagem e não é aberto ao público. Sua regulamentação visa proteger os usuários e evitar a concorrência com o transporte público coletivo. O serviço público de transporte é um direito social, prestado em regime orientado pela regularidade, continuidade, modicidade e controle tarifário, atendimento a gratuidades, entre outros aspectos. Assim, o sistema de transporte público coletivo pressupõe a compensação entre ligações superavitárias e deficitárias.
O fretamento não é balizado pelos princípios do serviço público. Seu objetivo é o resultado econômico, de modo que somente as ligações com alta procura são ofertadas, com liberdade de preço e sem atender benefícios tarifários. Trata-se de atividade econômica em sentido estrito, livre à iniciativa privada, mas sujeita à autorização e regulação estatal, como decorre da parte final do Artigo 170 da Constituição.
Se o fretamento é explorado como serviço regular, ou seja, com ligações ou linhas constantes, aberto ao público e com venda individualizada de passagem, desnaturaliza-se a atividade e se instaura concorrência desleal e ruinosa com o transporte público. Trava-se ao longo dos últimos tempos verdadeira guerrilha judiciária: associações e empresas de fretamento por aplicativo ou colaborativo inundam o Poder Judiciário com ações. Se o resultado da liminar ou da sentença é desfavorável, apressam-se em desistir do processo.
Mais recentemente, foi impetrado um mandado de injunção perante o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), alegando-se que haveria lacuna legislativa quanto à regulamentação do fretamento. Não há lacuna alguma. A matéria é regulamentada há muitos anos. Naquele processo, a manifestação do Governo do Estado foi incisiva no sentido da ilegalidade do fretamento por aplicativo ou colaborativo tal qual se apresenta. Além de desatender ao quadro normativo vigente, defender a concorrência entre o fretamento e o transporte público coletivo significa romper o equilíbrio dos sistemas de serviço público de transporte coletivo, levando-os à inviabilidade. Os prejudicados serão os usuários. Não há falta de regulamentação do fretamento. Existe, sim, a tentativa de descumprir o sistema legal e desvirtuar o fretamento.